A crise de escala global inaugurada com a pandemia de Covid-19 tem trazido à tona velhos e novos problemas e fragilidades do modelo de sociedade vigente, com rebatimentos diretos na dinâmica das cidades.
Talvez os aspectos a que nossa memória nos remeta de modo mais imediato sejam aqueles experimentados no nível individual, motivados pelo isolamento e pela necessidade de nos adaptar a uma nova rotina. A carência dos espaços comuns – de trabalho, lazer e sociabilidade – e dos fluxos de ir e vir aos quais estávamos habituados de modo quase automático, somada às incertezas sobre o futuro, provoca sentimentos que podem ser angustiantes acerca daquilo que convencionamos chamar de “novo normal”. Todavia, uma olhada rápida para as nossas cidades – pela janela de casa, pelo noticiário da TV ou pelas informações que se chegam pelo celular – nos faz ver que esse novo normal é seletivo, pois apenas uma parcela da sociedade tem as condições de se adaptar a ele, e que há questões estruturais, de natureza social, política e econômica, que merecem reflexão.
As consequências do contágio e os efeitos da pandemia não apenas reproduzem como escancaram as desigualdades socioeconômicas características das nossas cidades e do nosso modelo de urbanização segregador. Não à toa, em que pese os bairros mais nobres concentrarem os maiores índices de contaminação, é na periferia dos nossos centros urbanos que a taxa de letalidade se amplia. As condições de acesso à saúde e a itens básicos como água, sabão e máscaras também é um determinante de como a doença se alastra de modo diferente nos distintos espaços urbanos.
Do ponto de vista econômico, há a reclamação pela busca de equilíbrio, tão necessário quanto difícil de equacionar, entre a restrição às atividades econômicas e à circulação de pessoas e mercadorias e a manutenção da atividade produtiva.
Na seara política, entre tantas outras dimensões passíveis de análise, os dissensos de ordem política e os limites do pacto federativo brasileiro se evidenciam. A disputa, tanto no campo simbólico e discursivo quanto nas práticas, entre os distintos entes federativos, trouxe para o centro da agenda a discussão sobre a autonomia e os limites da ação dos entes. Estados e municípios têm protagonizado ações de enfrentamento à pandemia, ora convergentes ora nem tanto, mas que têm sido responsáveis por “frear” a curva de contaminação.
No tocante à gestão pública, ressalta-se a fragilidade, não apenas do sistema de saúde, mas dos nossos sistemas de decisão pública que têm se mostrado incapazes de gerar respostas rápidas para lidar com problemas complexos como o que estamos enfrentando. Seja pela morosidade da nossa burocracia e as amarras regulatórias, ou mesmo pela dificuldade de pensar políticas baseadas em evidências e a pouca cultura de gestão de riscos no setor público.
Estas questões, mencionadas rapidamente aqui, mas que demandariam cada uma delas uma análise mais aprofundada, longe de esgotarem a discussão sobre os efeitos da pandemia nas nossas cidades, são reveladoras da multidimensionalidade desta crise. A discussão também lança luz sobre a disputa entre distintas visões de mundo e projetos de cidade, alguns mais inclusivos, sustentáveis e preocupados com o bem-estar das populações, e outros excludentes e mais preocupados com a manutenção de privilégios e a satisfação de interesses individuais.
São tantas as dimensões e possibilidades de abordagem do problema que poderíamos aqui passar horas a fio a explorá-los. Mas o nosso interesse focal neste texto é a gestão das cidades e as lições que podem ser extraídas deste momento de crise.
Se, em uma das faces da pandemia, temos os diversos problemas e disputas já elencados, na outra face é possível identificar uma profusão de iniciativas solidárias que tem se originado em diversos campos, empreendidas por governos, universidades, empresas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, coletivos e cidadãos comuns, na direção da minimização dos efeitos perversos da pandemia.
Desde o agravamento da situação de crise tem despontado ações que renovam a nossa crença que outros modelos de cidade, de gestão, de relações institucionais e de sociedade são tão possíveis quanto urgentes. Universidades têm atuado na linha de frente do enfrentamento, colocando à disposição da sociedade não apenas o conhecimento produzido, mas a sua capacidade instalada de infraestrutura e pessoas auxiliando na produção de máscaras, álcool em gel, equipamentos de saúde e de proteção individual, etc., fortalecendo ainda mais a sua relação com as cidades e territórios em que estão inseridas. Empresas têm intensificado ações de responsabilidade social. Projetos e campanhas de arrecadação e financiamento coletivo têm sido mobilizados pela sociedade civil, organizada ou não, no sentido de garantir condições mínimas de sobrevivência para populações e grupos vulneráveis, para quem os efeitos da pandemia, sobretudo de ordem financeira, são ainda mais cruéis.
Estes movimentos assumem os mais diversos formatos e estratégias de ação e se direcionam a distintos públicos. Isso nos permite tomar o retrato desta nova realidade como uma metáfora do funcionamento da cidade, tendo a diversidade e heterogeneidade de formas e a dispersão de fluxos como características centrais. Se a cidade pode ser compreendida como um mosaico de estruturas e ações, a sua gestão demandará cada vez mais sensibilidade para perceber como estas diferentes partes atuam e promover as articulações e aproximações necessárias, a fim construir convergências e conformar uma estrutura harmônica, de modo a que todos se sintam contemplados e possam dar a sua contribuição.
Historicamente, fomos acostumados a esperar que os governos e representantes eleitos apresentem soluções para os problemas públicos, materializadas em políticas, projetos e ações. Longe de defender que as ações de governo possam ser substituídas por estas iniciativas, há que se levar em consideração que tais instituições e atividades prestam uma relevante contribuição para a melhoria do bem-estar e da qualidade de vida nas nossas cidades e a minimização dos problemas sociais. Isso reforça a defesa de que, para além do Estado e dos governos, há outros atores que participam do processo de produção de bens, serviços e políticas públicas e cujas ações poderiam ser potencializadas a partir de um maior reconhecimento e articulação e da complementaridade de ativos.
A expectativa que se cria a partir deste movimento de resgate ou redefinição da noção de público é de que ele seja capaz de gerar novos aprendizados para a gestão das cidades em um mundo pós-pandemia. Muitos são os dispositivos de que se pode lançar mão para avançar na estruturação de formas inovadoras de governança e gestão das questões públicas, baseadas na inteligência coletiva, na ação colaborativa, na cocriação de alternativas e estratégias de desenvolvimento e na coprodução dos bens e serviços públicos. Isso dependerá, em grande medida, da capacidade dos governos de apreender estes novos cenários e da disposição para experimentar e explorar novas formas de atuação baseados na inovação e no conhecimento aberto. A partir da participação dos diferentes sujeitos, individuais e coletivos, que habitam a cidade e com ela se relacionam, poderemos vislumbrar a construção de projetos coletivos de cidades.
Autoria: Francisco Raniere Moreira da Silva. Docente da Universidade Federal do Cariri (UFCA), vinculado ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA). Coordenador do curso de Administração Pública e Gestão Social e tutor do LaCITE.
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