Segundo Candido (1995), a Literatura aparece claramente como manifestação universal da humanidade em todos os tempos, não há povo e não há pessoas que possam viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Refletindo sobre essa afirmação é possível perceber que a Literatura e as relações humanas são indissociáveis, portanto, a produção da escrita literária pode se dá inerente à crítica social do presente que para o leitor seria uma forma despretensiosa de representação da realidade.


O campo de conhecimento da Literatura engloba muitas categorias e uma delas é a Literatura Fantástica, na qual uma das suas ramificações é a Ficção Científica. O gênero literário distópico é um subgênero da Ficção Científica que demonstra essa percepção dúbia da realidade de forma exacerbada, análoga a uma “lupa” posta no presente que vislumbra o futuro (um possível futuro) ao criticar, hiperbolicamente, o ultraje de vivências do dia presente, apresentando narrativas tidas muitas vezes como “oráculo literário”.


A literatura distópica recentemente tem ganhado cada vez mais espaços nos diálogos e na construção de debates por apresentar uma realidade mimética, imaginada ou simulada, mais atrativa (curiosa) do que a realidade empírica, justamente por enfatizar a responsabilidade das ações antropofágicas sob esta. Mas de que forma a literatura distópica está relacionada com a cidade? A resposta plausível seria a retratação de uma cidade em constante processo de degradação humanística, política, econômica e ambiental, por vezes arquitetural no seu enredo.


Nos tempos atuais, a principal convergência entre as narrativas distópicas e o presente regido por isolamento social, pandemia, incertezas e desterritorialização, são as característica desse gênero literário: o alarmismo catastrófico. Este é um viés antagônico às famigeradas utopias literárias, na qual a cidade é idealizada perfeita e construída nos moldes para o bem comum, com aclamada mobilidade, arquitetura enaltecida e engenharia social, no qual os espaços são ocupados por todos; inexistem segregação e gentrificação (aspectos positivos similares às atuais diretrizes das cidades sustentáveis).


Essa dicotomia entre utopia e distopia apresentada na Literatura aponta reflexões e não escolhas. De um lado um futuro histórico, de outro lado caminhos a serem seguidos? De fato, o que a literatura distópica chama atenção nos dias de hoje referente à sua crescente visibilidade passível de comparativos é a manutenção de ordem e realocação de sujeitos nos espaços sociais urbanos. Neste gênero literário, há obrigatoriedade de vínculo com o racionalismo opressor repelente da emoção humana traduzido pela fúria do avanço tecnológico. A tecnologia deixa de ser libertadora e tende a refletir na ingovernabilidade da natureza com sua insustentabilidade e desequilíbrio.


Esses aspectos de manutenção de ordem e realocação de sujeitos estão presentes em distopias literárias, como: Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley, onde o submundo Malpaís é recluso (uma reserva natural com microliberdades e costumes invertidos de um ambiente não controlado); em 1984 (1949) de George Orwell e seu recorte geopolítico mundial (Eurásia, Lestásia e Oceania); em O Conto da Aia (1985) de Margaret Atwood com os impasses da conquista territorial da República de Gileard entre as excludentes e punitivas colônias e fronteiras canadenses; em Não Verás País Nenhum (1981) de Ignácio de Loyola Brandão com uma São Paulo seccionada e guetificada tão similar ao recorte espacial dos distritos na trilogia de Jogos Vorazes (2008-2010) de Suzanne Collins.


Em todas essas cidades distópicas, independentemente das suas peculiaridades, inexistem a participação popular na gestão ou gestão democrática, bem como os espaços de sociabilidade e o pertencimento igualmente inexistem ou são abordados enquanto espaços clandestinos de resistência. Em resumo, estas são cidades construídas e geridas sem nenhuma perspectiva coletiva e de total descaso com questões envolvendo o futuro das sociedades urbanas.


Seja na literatura ou na realidade empírica, a desterritorialização é um processo necessário e mantenedor da lógica industrial, onde assim como uma de suas características fundamentais, a produção serial, tem-se o intuito de fabricar pessoas padronizadas e homogêneas. Essa lógica, ao ser implementada no convívio urbano, acarreta tensões e conflitos violentos: criminalidade, saques e vandalismo que para Rolnik (1995) essas ações são expressões claras da cidade dividida.


A desterritorialização e as metáforas surrealistas das cidades ou grandes centros urbanos existentes nestes livros citados reafirmam essa reorganização do espaço urbano nas cidades imaginadas. Porém, segundo Da Silva (2008), dentro de um recorte espacial existente e nos centros urbanos cujas paisagens naturais são transformadas e lapidadas em prol da cultura citadina, ao passo que restringe o diálogo entre natureza, culturas e individualidades, sendo redimensionado o espaço das necessidades humanas.


A capacidade que a ficção tem de conduzir ideias inquiridoras de interesses político-econômicos das sociedades por meio da literatura permeia a transversalidade dos estratos sociais, ao se preocupar com o futuro dos homens e as relações de poder nos espaços urbanos. Desta forma, a ideia de Civitas e a cidade política estão diretamente ligadas à irregular e decadente vida coletiva suprimida ou precarizada da narrativa distópica, no qual os controles administrativos estatais gerenciam a cidade a partir de relações de poder e de seus aparelhos ideológicos repressivos.


Dito isto, uma vez que a cidade é refletida na escrita, pois através da arquitetura de cada é possível “ler” suas histórias e imortalizá-las, segundo Rolnik (1995) a definição de cidade têm sua “essência” urbana em outros tempos e lugares e referências à hierarquização espacial. Seria análoga a um “ímã”, afinal ela cria “um campo magnético que atrai, reúne e concentra os homens” (ROLNIK, 1995, p. 12).


Se para Bauman (2009) “é nos lugares que se forma a experiência humana, que ela se acumula, é compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado”, então é indicado nos questionarmos a cerca do lugar de cada indivíduo na sociedade em que vivemos, projetando em nossos espaços de leitura os problemas reais da atualidade representados exacerbadamente nas distopias ou na intangibilidade esperançosa das utopias.


Este certamente é um importante instrumento de reflexão da contemporaneidade sobre o presente e futuro, sobre degradação e revitalização, e acima de tudo, sobre urbanidade e desdém ou ações humanas, visto que o espaço urbano não deixa de ser um laboratório oportuno para perceber a experiência urbana frente à convivência com as diferenças, seja na disputa de poder ou a partir de estruturas naturais. A literatura distópica alerta e desnuda futuros possíveis e prováveis, é recomendável a introdução destas narrativas literárias no cotidiano daqueles que buscam um caminho alternativo na construção de espaços para o desenvolvimento humano.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2009.

CANDIDO, Antonio et al. O direito à literatura. Vários escritos, v. 3, p. 235-263, 1995.

DA SILVA, Antonio de Pádua Dias. A cidade deteriorada: distopia literária e ecologia na ficção de Ignácio de Loyola Brandão. Terra Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literários, v. 12, p. 5-15, 2008.

ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Coleção Primeiros Passos; 203)


Autora: Jéssica Monteiro Ferreira, graduada em Administração Pública e Gestão Social pela Universidade Federal do Cariri (UFCA), pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos, Sustentabilidade e Políticas Públicas (LAURBS), idealizadora e integrante do Projeto de Cultura “Distocult”.