Instrumentos legais que regulam a Política Urbana e a importância dos mesmos para o desenvolvimento da cidade

No âmbito público contemporâneo, não se fala somente de um único bem a ser perseguido. Diante disso, vêm à tona os conflitos de interesses, a pluralidade de valores, o grau participativo nas decisões públicas e como equalizar os objetivos da sociedade para uma cidade.

Em diversos documentos (Constituição Federal, Estatuto da Cidade, Leis Orgânicas, Planos Diretores) com força de lei, a justiça aparece como um valor social coerente a ser assegurado. O planejamento e a gestão[1] urbanos, em consonância com o Estatuto da Cidade, comumente busca assegurar à justiça social e tem como objetivo o desenvolvimento urbano.

Limitar o poder e equalizar a pluralidade de valores na produção do espaço é uma questão pública. No preâmbulo da Constituição Federal de 1988, tem-se como valores supremos o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Aqui considera-se o princípio utilizado por Souza, quando disse:

[…] os instrumentos de planejamento (urbano ou qualquer outro) e as rotinas de gestão (idem), por mais relevantes e criativos que sejam, só adquirem plena legitimidade ao terem a sua operacionalização e a sua implementação debatidas, deliberadas e monitoradas pelos cidadãos (SOUZA, 2006, p. 33).

Em linhas gerais, Manuel Castells (2018) frisa que a democracia liberal propõe direitos básicos, liberdade de associação, elaboração e execução de leis, separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, eleições livres e periódicas, delegação do poder dos cidadãos aos representantes eleitos. Para Marilena Chauí, são características da democracia liberal: “baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais” (CHAUÍ, 2016, p. 5).  O Brasil possui um regime democrático presidencialista multipartidário, constituindo-se uma República Federativa formada por Estados, Municípios e Distrito Federal e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (CF, 1988, p. 5).

Como possibilidade de democracia direta, a Constituição Federal lança mão, no Artigo 14, do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, como recursos participativos. Contraditoriamente, após a Constituição de 1988, só foram realizados apenas dois plebiscitos a nível nacional.

Compreende-se que a democracia deveria ser um sistema político pelo qual é possível oferecer oportunidade às mais diferentes classes, ao diálogo e às decisões públicas, sendo a busca por justiça um de seus critérios, a começar por quem, ou, quais agentes vão ter direito ao poder decisório e quais concepções irão guiar a política normativa.

Sob a proposta da reforma urbana chegou-se ao Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257 de 2001) que é composto por cinco capítulos: um deles dedicado ao Plano Diretor e outro à Gestão Democrática. A mencionada lei estabelece as diretrizes para a política urbana do país nos níveis federal, estadual e municipal, e regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Essa lei obriga os municípios, que já apresentaram seus Planos Diretores, que elaborem a sua revisão. O art. 40. § 3o do Estatuto diz que: “a lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos” (BRASIL, 2011). Portanto, é na esfera normativa de nível municipal que o Plano Diretor legitima os instrumentos ofertados da política urbana do Estatuto da Cidade.

Podemos observar que a aprovação do EC ampliou a elaboração e/ou revisão dos planos diretores, na busca por transformá-los em Planos Diretores Participativos. A possibilidade de participação foi preconizada através do Capítulo IV do Estatuto da Cidade, que aborda nos artigos 43, 44 e 45 o teor da Gestão Democrática da Cidade. Muitos municípios passaram a ter alguns desses instrumentos regulamentados pelos Planos Diretores.

A consolidação de lutas setoriais na forma de lei[2] como o Estatuto da Cidade é um “avanço”, mas a aplicação é sua conquista maior. Para que a lei seja efetivada, serão necessárias pessoas comprometidas com as virtudes morais, com a honestidade, com o dever social. A pressão social e o caráter de persistência na busca de direitos ampliam essas conquistas. No caso de Juazeiro do Norte há, no entanto, algo que chama atenção: a passividade social, pois a sociedade local ainda aguarda a revisão do seu primeiro e único Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, aprovado ainda no ano 2000.

Essa busca, pela legitimidade de uma ação devidamente reconhecida por via normativa, só existe quando as pessoas agem unidas, estabelecem laços de cooperação, momento em que olham para o mesmo horizonte. Todavia, para isso ocorrer é necessária a ativação dos neurônios-espelho:[3]

 A ativação de nosso cérebro por meio de padrões neurais estimulados pelos neurônios-espelho é a fonte de empatia, da identificação com narrativas na televisão, no cinema ou na literatura, e até com as narrativas políticas de partidos e candidatos – ou da rejeição de todas elas. […] (CASTELLS, 2015, p. 199).

Na visão de alguns autores, o avanço institucional (normativo) é parte de um aspecto positivo sobre uma nova forma de pensar o planejamento das cidades, já outros são descrentes, pois consideram que, no Estado capitalista, prevalecem os interesses de um pequeno grupo para progredir na escada do lucro e das vantagens competitivas.

Posto isto, consideramos que em uma democracia, onde há instrumentos legais que regulam a política urbana, seja necessário a investigação dos conflitos que vestem o desenvolvimento urbano e quais prioridades são consideradas para qualificá-lo como bom e melhor, inclusive pensar na possibilidade de incluir novos direitos que ainda não foram reconhecidos no Estatuto da Cidade e nas leis de uma maneira geral. Assim podemos ponderar que a própria definição da concepção de desenvolvimento urbano é uma questão de justiça, para fazer face a essa justiça devemos ouvir as queixas, as exigências e os desejos das mais diferentes pessoas.


NOTAS

[1] SOUZA afirma: “o planejamento é a preparação para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é a efetivação ao menos em parte […] das condições que o planejamento feito no passado ajudou a construir” (2001, p.46). Estes devem ser vistos como complementares e indissociáveis.

[2] As leis institucionalizadas são um conjunto de normas e regras que visam estabelecer justiça e harmonia social. São uma conquista, fruto de um processo histórico de criação humana, mas não convém afirmar que estas são imutáveis ou necessariamente estão corretas e/ou justas. Anterior à lei institucionalizada, a lei já pode existir no seio de uma sociedade ou de um grupo. Aqui distinguimos as leis em percebidas, consentidas e sentidas. Quando as pessoas conhecem, mas não necessariamente seguem tais leis, estas são as percebidas. Já as consentidas são aquelas em que as pessoas conhecem sua existência e seguem, mas não necessariamente concordam. Por terceiro, as leis sentidas são aquelas que as pessoas carregam dentro de si, anterior a sua institucionalização; não é preciso dizer o que é “correto” fazer; o indivíduo já carrega consigo o sentido do que é preciso realizar. O aspecto das leis sentidas tem um caráter utópico e visionário baseado na mudança e conscientização do ser humano. Um exemplo para tal questão é observar que para alguns indivíduos não é preciso que aja uma lei afirmando para não matar ou não desviar dinheiro público. O indivíduo já carrega dentro de si um senso de respeito, solidariedade, cuidado, amor ao próximo, honestidade e justiça, ou seja, de conscientização, que o impede de fazer algo do tipo.  Importante observar que essa análise não carrega o teor jurídico formal e sim uma reflexão de caráter filosófico e prático. Essa análise envolve outros aspetos, como questões éticas, onde a sociedade institui valores através do tempo e de sua cultura, estabelecendo o que seja virtude, o justo, o bem e o mal.

[3] Os neurônios-espelho representam a ação de outro sujeito. Eles permitem processos de imitação e empatia, bem como a identificação com os estados emocionais de outros indivíduos, um mecanismo subjacente à cooperação em animais e em humanos. (CASTELLS, 2015, p. 198).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Organizado por Cláudio Brandão de Oliveira. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2002. 320p.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de setembro de 2001 (Estatuto da Cidade). Diário Oficial da União, Seção I (Atos do Poder Legislativo). Edição Nº 133, de 11/7/2001.

CASTELLS, M. O poder da comunicação. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne; revisão de tradução de Isabela Machado de Oliveira Fraga. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

CASTELLS, M. Ruptura: A crise da democracia liberal. Tradução Joana Angélica d´Avila Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 152 p.

CEARÁ, Governo do Estado. Secretaria de Infra-Estrutura (SEINFRA). Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município de Juazeiro do Norte. Lei 2.572 Lei do Plano Diretor, 2000c.

 CHAUÍ, M. Aula Magna do curso: como ligar com os efeitos psicossociais da violência?. Santa Catarina: UFSC, 2016.

SOUZA, M. L. de. A prisão e a ágora: reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.


utoria: David van den Brule, graduado em Geografia pela Universidade Regional do Cariri (URCA), especialista em Geopolítica e História pela Faculdade Integradas de Patos, mestre em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).